A realidade sociológica dos filhos de pais separados, estigmatizante até o ao princípio dos anos setenta de antanho, é hoje uma inteira normalidade.
Os temas relativos ao poder paternal sobre filhos menores de pais separados ganharam ultimamente grande visibilidade. Essa notoriedade é francamente positiva... mas por maus motivos. Na verdade, os debates que se têm travado sobre o assunto evidenciam as perversões do sistema legal, auxiliadas pela atitude de uma certa magistratura, em parte demasiado intolerante e, noutra parte, demasiado permissiva. Intolerante porque reage com excessiva prudência e rigor na aplicação da lei e a certas acusações entre progenitores (por vezes de uma indescritível torpeza); permissiva porque se preocupa pouco com as consequências do excesso de rigor na aplicação da lei e na confirmação da realidade material das ditas acusações.
As circunstâncias que refiro têm sido consideradas ultimamente na temática da chamada "alienação parental". Sou muito céptico em relação às tendências da moderna pedagogia/psicologia, que parecem concluir que a busca da excelência não passa de pedantismo e a que mediocridade é algo que, mais do que aceitável, deve ser promovida. O resultado disto é o que se vê nas escolas... Mas, pelo que toca à identificação da dita "alienação parental", ela é inteiramente justificada, seja lá de que tendência da pedagogia/psicologia provenha.
Nos tribunais assiste-me muitas vezes a situações em que um dos progenitores pretende erradicar o outro da vida do filho. Normalmente, ligam-se com o fim da relação entre os pais e a vítima do ataque é o pai do(a) menor... a mãe tem a pretensão de que o "divórcio" seja global, isto é, que abranja também a quebra dos laços de afectividade entre o pai e o filho. Este objectivo é, também normalmente, conseguido através de uma estratégia de demonização do pai perante o tribunal, o que conduz à atribuição do poder paternal à mãe (ao contrário do muita gente pensa, "custódia" é expressão que não existe na lei portuguesa). Para este estado de coisas contribuem, por um lado, a lei e, por outro, a estranha atitude de alguma jurisprudência. A lei, porque só permite a partilha do poder paternal se os pais nisso estiverem de acordo, impedindo o juiz de a determinar na falta do mesmo. Quanto ao dito sector jurisprudencial, continua a verificar-se que há quem pense que a mãe é, por definição (indemonstrada, claro está!), o melhor dos dois progenitores para o exercício do poder paternal. É preconceituoso e absolutamente inaceitável quanto às pessoas que têm o poder jurídico de decidir a vida de outrem.
Há pouco tempo foi-me mostrada uma decisão de uma magistrada do Ministério Público do Tribunal de Família e Menores de Lisboa que rejeitava um acordo de regulação do poder paternal feito pelos pais, no qual se previa a guarda conjunta alternada por 15 dias. Motivos: a lei não o permite expressamente (art. 1906, n.º 1, do Código Civil) e esse regime cria instabilidade (abstracta) aos menores! Quanto ao primeiro argumento, a interpretação proposta para a lei é rígida, formalista e não atende aos interesses materiais em causa. Além do mais, atenta contra as próprias regras sobre a forma como deve ser interpretada uma lei (art. 9.º do Código Civil) e contra a jurisprudência de tribunais superiores, em cujas decisões se faz interpretação oposta. O segundo argumento é pior, porque revela uma "cegueira" total em relação à realidade sociológica em que hoje vivemos. Ninguém com poder decisório num tribunal de família deve ignorar que as concepções sociais estão sempre um passo à frente do legislador, devendo a lei ser interpretado e aplicada de forma a adaptar-se o mais possível às necessidades reais das pessoas reais. Porque é a essas que direito se dirige! É caso para lembrar a esses senhores que têm o poder decisório nesta matéria, que o divórcio já foi em tempos proibido e que a mulher casada era tratada pela lei como se demente fosse e que tudo isso era objecto de forte rejeição social!
Mas há mais: da referida decisão de indeferimento, porque proferida no âmbito de processo de divórcio por mútuo consentimento, não há recurso; os pais estão de acordo quanto ao que é o melhor para o seu filho e não se pode dizer que esse acordo seja objectivamente mau para o menor ou irrazoável; mas quem decide mesmo o que é melhor para a criança é o magistrado do Ministério Público, cuja decisão não é sindicável no processo. Isto é que é ter poder...
João Espírito Santo
Advogado e docente universitário