Reflexões de um Caracol à Beira da Estrada
Será a experiência estética a experiência do mundo.... o devir é um devir estético... ou será que devo atravessar a estrada?
sábado, abril 15, 2006
Amor e sociologia: da estranheza ao reencontro
A igualdade entre homens e mulheres e o amor
A ideia segundo a qual o amor é a religião secular das nossas
sociedades surge com Beck e Beck-Gernsheim, autores de um livro
significativamente intitulado O caos normal do Amor. Baseiam-se numa
análise muito extensa e bem fundamentada das relações familiares recentes
na Alemanha, que foca, entre outras realidades, o aumento do divórcio e da
famílias recompostas, a descida abrupta da taxa de natalidade, o aumento da
participação feminina na actividade. Assumindo depois, claramente, que se
debruçam sobre as tendências mais recentes – com manifestações muito
diferente nas diversas zonas geográficas e sociais da Alemanha –
observáveis fundamentalmente nas grandes cidades. Acentuam, assim, a
crescente tendência global para a individualização e o maior protagonismo
dos indivíduos na construção do seu próprio destino no campo das relações
amorosas e sentimentais.
Para os autores, a fé no amor está ligada à sua falta de tradição.
Chega depois dos partidos, dos credos, das grandes narrativas e nasce
também depois da quebra dos tabus em relação às liberdades sexuais (Beck
e Beck-Gernsheim, 1990/1995:177). Trata-se de uma religião sem igrejas e
sem padres: “nós” somos o seu templo e os nossos desejos as suas orações.
Tal como Luhmann, os autores não deixam de focar os paradoxos envolvidos
nos comportamentos recentes, nomeadamente o contraste entre experiência
vivida e valores, orientações, expectativas.
Também Bourdieu, ao abordar a problemática da dominação
masculina, (1998) se interroga, em cerca de quatro páginas, sobre a
possibilidade de, no quadro da relação homem/mulher, o amor funcionar
como elemento de neutralização dessa dominação: será que o amor
“suspende a relação de dominação masculina e a sua violência simbólica ou
não deixa de a perpetuar com subtileza?” (Bourdieu, 1998:116).
A resposta de Bourdieu parece clara. É possível que o amor tenha
esse poder de suspender a dominação masculina, mas há condições para
que ela possa de facto ocorrer. Por um lado, não se trata de uma aquisição
de uma vez por todas: “só através de um trabalho de todo os instantes,
recomeçado sem cessar, se pode arrancar às águas frias do cálculo, da
violência e do interesse, essa “ilha encantada” do amor, esse mundo fechado
e perfeitamente autárcico que é o lugar de uma série continuada de milagres:
o da não-violência, que torna possível a instauração de relações fundadas na
plena reciprocidade e autorizando o abandono e a entrega de si; o do
reconhecimento mútuo, que permite, como diz Sartre, o sentir-se “justificado
por existir” (...); o do desinteresse que torna possíveis as relações
desinstrumentalizadas (...)”(Bourdieu, 1998:117). A igualdade entre pares, no
contexto da relação amorosa, constitui assim peça fundamental para que o
milagre que suspende a dominação se concretize: “o sujeito amoroso só
pode obter o reconhecimento de um outro sujeito, mas que abdique, como
ele próprio, da intenção de dominar” (1998:119).
E Bourdieu continua, num texto que trai o sujeito que fala do que sabe
porque ama ou amou, falando da relação amorosa com um outro igual na
procura de comunhão e fusão, testemunhada na utilização sem cessar de
redundâncias, como os repetidos “amo-te, amas-me?” e na atribuição de
inúmeros nomes carinhosos e dos termos com que se “nomeia” o outro.
Termina, em sentido convergente com os autores que temos vindo a
referir, mostrando como o amor pode surgir como um lugar de
transcendência e de resistência às instituições. “Reconhecimento mútuo,
troca de justificações de existir e de razões de ser, testemunhos mútuos de
confiança, tantos sinais da reciprocidade perfeita que confere ao círculo no
ual se encerra a díade amorosa, unidade social elementar, inseparável, e
dotada de uma poderosa autarcia simbólica, o poder de rivalizar
vitoriosamente com todas as consagrações que se pedem habitualmente às
instituições e os rituais da “Sociedade”, esse substituto mundano de Deus”.
Uma perspectiva específica sobre as relações afectivas, o amor e
o casamento
Procurando fazer uma pequena síntese, pode concluir-se que, apesar
da diversidade das propostas analisadas, há dois temas que as atravessam e
aproximam. Trata-se, por um lado, do tema da relação entre modernidade e
amor romântico e, por outro, da questão dos efeitos da chamada questão
feminina na vivência do sentimento amoroso. Embora elas sejam temáticas
associadas entre si, vale a pena, num primeiro momento, distingui-las.
Quanto ao primeiro tema, o que parece mais interessante reter é a
ideia de que a crescente individualização, representando maior margem de
liberdade e de escolha no plano das relações conjugais e familiares, tem
igualmente consequências complexas, criadoras de novas dificuldades. Os
autores não são os primeiros a fazer a análise desta relação entre
modernidade e amor romântico 8, mas é nova a forma sistemática como
abordam o tema e o estatuto central que atribuem à articulação dos
chamados níveis macro e micro. A partir destas propostas passam a encararse,
de forma muito directa, as interinfluências que se estabelecem entre vida
pessoal, intimidade, e estruturas ou sistemas sociais, tornando-se mais difícil
pensar a vida quotidiana desenraízando-a dos seus contextos de ocorrência.
Por aí surge uma das vias que permite e facilita a operacionalização, a
transformação das propostas teóricas em questões específicas ao real, tal
como se procurou fazer na pesquisa a que temos feito referência.
O segundo tema, referido aos efeitos da tendência para a igualdade
entre homens e mulheres na forma como se vivem as relações familiares,
conjugais e amorosas, parece também atravessar as perspectivas focadas.
É, de resto, este o objecto de vários dos artigos que já nos anos noventa
procuram explorar a relação entre intimidade, emoções, amor e género.
Embora a emancipação feminina e os seus efeitos na relação amorosa já
tenham sido analisados por Simmel (1988) ou por Octavio Paz – “não há
amor sem liberdade feminina” (Paz, 1993/1995:54) – a verdade é que as
transformações dos últimos 40 anos tornaram ainda mais óbvia essa relação.
Associando os dois temas que atravessam as perspectivas dos
autores focados, é-se reconduzido novamente ao problema que desde o
início tem estado presente neste trabalho e que indaga sobre a relação entre
a chamada questão feminina e a conjugalidade nos sociedades
contemporâneas. Vejamos então como, a partir dos contributos dos autores e
das nossas próprias interrogações de pesquisa se procurou operacionalizar a
questão do sentimento amoroso.
A afectividade constitui uma das dimensões das relações sociais,
dimensão que contem a vertente amorosa mas, também, todas as outras
formas de afectividade: a maternal, a paternal, a parental, a erótica e sexual,
a amizade, o companheirismo. O afecto produz “obras”, pessoas, é uma
forma de criação por excelência da vida social em sentido metafórico e real.
Já desde os clássicos gregos até aos românticos se procurou sempre
identificar distinções nas diferentes formas de exprimir os sentimentos e
emoções. A associação entre amor e casamento é, em todo o caso, mais
recente. Quando era dominante o casamento por interesse, por exemplo, era
essencialmente fora da lógica conjugal que o amor encontrava os seus
protagonistas e as suas musas. Hoje, ele é claramente considerado como
único fundamento legítimo para o casamento. Chega mesmo a ganhar mais
espaço, subvertendo o imperativo heterosexual, tornando-se também
pretexto para uniões homosexuais.
O aumento do divórcio vem, por outro lado, revelar que a relação
conjugal e o amor estão particularmente sublinhados, assumem importância
central na vida dos indivíduos. Mesmo que à primeira vista os laços conjugais
pareçam frágeis, porque baseados no sentimento que é aparentemente mais
efémero, a verdade é que os indivíduos tendem para a relação dual, que
conserva todo o seu poder atractivo sobrevivendo mesmo a eventuais
decepções.
Defendeu-se em trabalhos anteriores a necessidade de investigar que
configurações assume o sentimento amoroso nos diferentes contextos
sociais, quais os sentidos atribuídos à comunicação amorosa, que distância
ou que proximidade se podem estabelecer entre amor e conjugalidade. Por
outras palavras, pretendia-se saber se, para além das emoções associadas
ao sentimento amoroso virtualmente vividas de forma semelhante, não se
encontrariam formas de experimentar e falar do amor que remetessem para
sentidos diferentes.
Pretendeu-se agora operacionalizar esta interrogação, procurando
captar como o amor é percebido nos diferentes momentos do ciclo de vida
conjugal, e se, através de palavras diferentes, se estão ou não recobrindo
emoções e sentidos idênticos. Partindo do princípio que se tende a assumir
explicitamente o amor como fundamento das relações conjugais
contemporâneas, seria interessante verificar se este sentimento perdura, se
desgasta, ou se reconstrói, assumindo outros sentidos; ou ainda, se se vive o
casamento mais como estatuto, mais como expressão do amor parental, ou
mais como relação dual fortemente investida do ponto de vista amoroso.
Estarão os parceiros conjugais mais próximos de Eros ou de Agapé? Que
influências tem o ciclo de vida conjugal nesta proximidade? Que diferenças
se podem encontrar entre homens e mulheres a este respeito? A procura de
respostas para estas interrogações traduziu-se na construção de um conjunto
de perguntas constantes do guião de entrevista da pesquisa sobre o
casamento.
Vejamos agora, para finalizar, as abordagens analisadas numa
perspectiva diacrónica e também à luz dos nos próprios resultados. Parece
constituir ideia convergente a um conjunto significativo de autores a
passagem de uma visão institucionalizada do casamento em que o amor está
secundarizado, para a perspectiva do casamento-romântico, através da qual
o sentimento amoroso ganha centralidade como pretexto legítimo e
fundamental para a relação. Acrescenta-se depois, nos anos mais recentes, a
transformação deste modelo de amor-romântico para um modelo de amorconfluente
ou, segunda a proposta que temos elaborado, de amorconstrução.
Cada mudança se associa a uma perspectiva diferenciada de
relação entre os sexos. Especifique-se um pouco mais.
A visão do casamento como instituição, dominante do século XIX aos
inícios do século XX, está associada também a uma concepção específica
sobre a vida amorosa e a liberdade dos dois sexos. O romance e o erotismo
localizavam-se fora do casamento e são para ser vividos no masculino e não
no feminino. Verificam-se assim assimetrias acentuadas entre homens e
mulheres, diferenciação total de papéis.
Para ambos o sexos, contudo, o casamento que se impõe aos
indivíduos como destino e que se deve manter, quer por questões de
alargamento ou manutenção do património, no caso dos sectores burgueses,
quer pela necessidade de sobrevivência económica e pela lógica das
responsabilidade contraídas, nos sectores socais mais desfavorecidos.
Embora com contornos já nuanceados, este modelo ainda persiste nas
representações e nas práticas dos nossos entrevistados sobretudo dos mais
velhos, do sexo masculino e dos sectores operários.
As dificuldades e disfuncionalidades do modelo devem-se ao facto de
os indivíduos se sentirem amarrados a uma instituição que os constrange e
lhes impõe comportamentos rígidos. Serão elas que, em articulação com
outras transformações sociais, a que não são estranhos também fenómenos
como o crescimento das chamadas classes médias e as mudanças de
valores, irão dar origem à passagem a outra “semântica”, como Luhmann nos
mostrou.
A ideia segundo a qual o pretexto legítimo para o casamento deve ser
o amor surge em luta contra a visão anterior. Assume-se então que se o
amor está no centro da escolha conjugal os problemas que existiam
anteriormente – desentendimentos conjugais devido à estranheza entre os
cônjuges, por exemplo - estariam automaticamente superados. Esta visão
está ainda associada a outras ideias, por vezes, contraditórias entre si.
Defende-se o amor como suspensão do tempo e do espaço, como “estado”
que vence todos os obstáculos e supera todas as dificuldades. Mas o
romance acaba quando a vida conjugal começa.
Neste modelo há sobreposição entre amor, paixão, atracção física,
impulso sexual, erotismo e assimetrias entre homens e mulheres. As
mulheres são mais responsáveis pelo “trabalho” do amor do que os homens,
na medida em que estariam especialmente vocacionadas para as emoções, a
domesticidade, as relações familiares. Assim, se as coisas correm mal,
também se lhes pode atribuir a elas a responsabilidade, por não terem tido a
“arte” de saber guardar o seu par. As entrevistas de algumas entrevistadas
mais velhas permitiram confirmar essa situação.
A visão romântica do casamento também surge frequentemente nos
discursos dos entrevistados. À medida que a idade e a duração do
casamento aumentam, as referências românticas ao sentimento amoroso
inicial tendem porém a dar prevalência às do companheirismo e da
solidariedade.
As contradições inerentes ao modelo parecem evidentes. Por um lado,
o amor é menos um estado que suspende o tempo e o espaço e assume
mais facilmente os contornos de um processo. Depois do casamento é que
tudo verdadeiramente começa. E sendo assim, se a escolha amorosa é
condição necessária ao casamento, ela não é suficiente. O que é
fundamental é que o amor persista ao longo da relação. Estas são algumas
das conclusões que se podem tirar do aumento dos divórcios depois dos
anos 60. A relação conjugal continua a revelar todo o seu poder atractivo,
reparador, regenerador, e até transcendente como promessa, mas é preciso
que o amor persista e que a relação tenha qualidade.
Chega-se assim ao modelo do amor construção. Frequente nos
discursos dos mais jovens, esta perspectiva caracteriza-se por se assumir
desde logo que, se o amor e a paixão foram o pretexto inicial para o
casamento, rapidamente ele se foi transformando num sentimento mais
estável, mais “construído”. Descobriram-se aspectos novos e até outros
sentimentos – a forma como ele se preocupa com a criança, a descoberta
dela no papel de mãe – ao mesmo tempo que se desidealiza o parceiro e ele
cai do pedestal para se tornar mais falível, menos entusiasmante, mais
previsível e, possivelmente, mais próximo. Ou, em alternativa, começam a
definir-se distâncias, cristalizam-se conflitos, aumentam as tensões em torno
de projectos individuais que se tornam incompatíveis. Embora menos
frequentemente também encontrámos em casais mais jovens sinais de
desconstrução em relação ao sentimento inicial, situações conflituais de
desfecho futuro incerto.
Este modelo de amor-construção implica maior paridade entre homens
e mulheres, mas conhece ainda as assimetrias que atrás foram focadas.
Nesta contradição entre interesses que são agora reconhecidos como
paritários ao nível das ideias e as práticas ainda assimétricas, residem
algumas das disfuncionalidades e contradições. Mas não só. Como mostra
Illouz (1998), se há muito de construído, de familiar e de rotina quotidiana,
pode haver a nostalgia da espontaneidade, do imprevisível, do extraordinário.
As forças centrípetas podem ser mais fracas do que as centrífugas. Perante a
energia que se parece desgastar ao “construir” a relação pode instalar-se a
nostalgia do amor incondicional. O que não traduz senão as contradições dos
valores contemporâneos. O direito à felicidade parece ser para hoje, estar
mais perto, e é também acrescida a liberdade individual. Mas também há
mais risco, mais incerteza, mais ameaças.
posted by Mikasmokas @ 4/15/2006  
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